quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014


  1. Garotas de programa, Facebook e a grávida no Metrô

    Paulo Raimundo Pereira Santos 

    Dezembro no Rio é o mês do alvoroço. São 21 horas no horário brasileiro de verão. Saio do jornal, na Cinelândia. Décimo andar de um velho edifício em frente ao Quartel-General da Polícia Militar. A região tem histórias. Sempre que chego ao térreo, na Rua Evaristo da Veiga, lembro que o quartel da PM foi presídio e inspiração para o filme “Memória do Cárcere”, baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos. Inevitável relembrar a cena antológica na ala feminina do presídio: as presas políticas, comunistas, cantarolam a marchinha de Noel Rosa que fez sucesso em 1933 (https://www.youtube.com/watch?v=v5cPkN4sVIQ): “O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu/e também vão sumindo, as estrelas lá do céu/Tenho passado tão mal/A minha cama é uma folha de jornal...”. A ala masculina escuta e faz coro.
    No sétimo andar a porta se abre e cinco mulheres maquiadas e perfumadas, invadem o elevador. Falam todas ao mesmo tempo com um "smartphone" à mão. Discutem em voz alta as postagens no Facebook. A mais jovem, na faixa dos 18 anos, tecla freneticamente, quase no meu rosto. A mulher mais velha diz que “isso não pode postar. 'Ele' não deixa”. Pelos trajes curtos, as pernas de fora e os seios quase à mostra e pelo bate-papo, - estou dentro de um "chat" -, percebo que são garotas de programa de uma “sauna”, no sétimo andar. 'Ele', deve ser o cafetão, um PM talvez, um delegado de polícia, quem vai saber.
    Naqueles segundos, viajando no elevador, pensei como a famosa e popular rede de relacionamento, o facebook, atinge a todos indiscriminadamente. Da freira no convento às meninas de um bordel na Cinelândia. E tudo é “Público”, sem os cuidados, expondo a alma alegremente, como se expõe a carne, imaginando-se como uma famosa "BBB", estrela do Facebook, à mercê de curiosos e “voyeurs”, tarados e bandidos, entre as muitas curtidas e compartilhamentos dos amigos e parentes, tudo misturado, não pelos quinze minutos de fama, mas por segundos de uma 'curtida'.
    Chegamos ao térreo. Eu e as garotas de programa. Elas seguiram na direção da boemia da Lapa. Me dirigi ao Metrô. Meu pensamento se concentrava no telefonema de minha esposa, que me avisara já estar em casa para cuidar de nosso filho. Sigo para o Maracanã.
    Na estação Carioca, embarcam seis mulheres falantes e bem vestidas e suavemente perfumadas. A conversa delas gira em torno de colega, moça magrinha com os olhos bem vivos e escuros. Ela narra os percalços que passa por ser magra e estar grávida nos primeiros meses, nas filas de banco e nos carros do Metrô. Numa agência bancária, conta que entrou na fila reservada aos idosos, grávidas e deficientes físicos. Ao chegar à boca do caixa, o funcionário a interpela, perguntando “qual é a sua deficiência?” para estar naquela fila. A jovem grávida responde que “não tem deficiência”. “Estou grávida”, diz. O bancário duvida e mulher retira da bolsa o resultado do exame que comprova o seu estado de gestação. “Posso ter ficado grávida há uma hora e serei uma mulher grávida. Quero meus direitos!”, acrescenta, impaciente.
    Em outra situação, ela conta que ao entrar no Metrô lotado, sentiu-se mal e sentou-se no chão. Uma mulher, no banco ao seu lado perguntou-lhe o que ela estava sentindo. “Cólicas! Estou grávida”. E logo, providenciam um assento prioritário, reservado às grávidas. Uma passageira que viajava em pé gritou em tom de sarcasmo: “Eu também estou grávida. Quero sentar!”. A futura mãe precisou tirar da bolsa o resultado do exame de gravidez para esfregar na cara da passageira irônica, que ficou desconcertada.
    Em dois momentos distintos, num tempo muito próximo, estive envolvido por algumas mulheres que se mostraram em situações diferentes, um recorte de suas vidas. As primeiras, conectadas para o mundo da prostituição, curtiam e compartilhavam seus corpos, sem restrições e pudor a um clique no Instagram. As outras compartilhavam a experiência de ser mulher, a que dá a vida, a mãe.
    Naquela noite, aquelas mulheres me tiraram o sono.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Espiritualidades                   
Paulo Raimundo Pereira Santos

Sabe quem dançou?

Sr. Pateur [...] Provavelmente, ao receber esta carta, o sr. já saberá o que aconteceu conosco. [...] enquanto eu estava ocupado com observações astronômicas do mais alto interesse, certos espíritos pouco filosóficos se apoderaram do governo e derrubaram a cadeira a que chamavam meu trono [...] Bastava que me pedissem, se dela faziam tanta questão! [...] Não são muito divertidas as nossas repúblicas na América do Sul. Cuida-se mais da criação do gado e do couro do que das letras, e a cultura do tabaco é mais importante que a cultura científica[...] Deus queira que pouco a pouco a nova república se policie e se refine! [...].”

D. Pedro II, cujo nome completo era: Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga.

A missivista, o último imperador brasileiro, ainda a bordo do navio que o conduzia ao exílio, mostra que a irreverência brasileira também corria no sangue azul da nobreza dos Orleans e Bragança, e não apenas nas veias do povo. Como se lê, na carta real, Sua Alteza zombou da sua sorte quando dançou do trono.

Padaria Espiritual

Art. 21: Será julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhos à fauna e à flora brasileiras, como cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc.”

  Assim, determina os Estatutos da Padaria Espiritual movimento literário que escandalizou e prosperou em Fortaleza, a partir de 1892. Esse seria o mesmo pensamento que daria o tom dos ideais de outros jovens que em 1922, fizeram a Semana de Arte Moderna, em São Paulo.

  “Em janeiro de 1890, o jornal humorístico O Bond, já falava do ‘Grêmio do Café Java’, na Praça do Ferreira, no centro de Fortaleza. Foi o núcleo do qual nasceu em 1892 a Padaria Espiritual, fundada na Rua Formosa, número 105, hoje, Rua Barão do Rio Branco. Era uma ‘Sociedade de rapazes de Letras e Artes cujo fim era o de fornecer pão de espírito aos sócios em particular e aos povos em geral’, ensina o professor Sânzio de Azevedo, da Universidade Federal do Ceará.
  Na Província do Ceará, vinte jovens escritores querendo expor seus pensamentos, fundaram a Padaria Espiritual, em defesa da língua portuguesa e da valorização do que era brasileiro. Queriam agitar a provinciana Fortaleza e repercutir suas idéias no Rio de Janeiro, a Capital Federal.
  Os jornais cariocas ao descobrirem o movimento literário cearense, reproduziram alguns artigos da “Padaria Espiritual’ conquistando leitores e fãs fora do Ceará, e elogios de críticos pela inteligência do humor “chistoso” e “iconoclasta”, como se dizia.
  Ninguém escapava da pena dos redatores do jornal “O Pão”, órgão oficial do grupo. Os padeiros se insurgiam contra tudo quanto cheirasse a coisa gasta ou piegas. Entretanto, não era impedido homenagear grandes vultos da literatura universal e pelo Art. 20, era permitido conservar o chapéu na cabeça, “exceto quando se falar em Homero, Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar”. Pelo Art. 19, vetava-se “escrever nas folhas mais ou menos perfumadas dos álbuns”. Também não podiam recitar ao piano, sob pena de “expulsão imediata e sem apelo” (Art. 28).
  Antônio Sales, o principal articulador daquela sociedade conta que a partir da nomenclatura adotada para o movimento, “Padaria Espiritual”, seus membros passaram a se chamar de “padeiros”. O “padeiro-mor” era o presidente, os secretários, “forneiros”, o tesoureiro, “gaveta” e os demais membros, “amassadores”. A sede principal era o “forno” e as reuniões eras as “fornadas”. Apresentavam-se os “padeiros” sob pseudônimos em geral jocosos: Assim, Antônio Sales era Moacir Jurema; Sabino Batista, Sátiro Alegrete; Adolfo Caminha, Félix Guanabarino; Ulisses Bezerra, Frivolino Catavento; Álvaro Martins, Policarpo Estouro; Lívio Barreto. Lucas Bizarro; Joaquim Vitoriano, Paulo Kandalaskaia. A estes, juntaram-se mais catorze novos sócios, entre os quais José Nava (Gil Navarra) – este, pai do memorialista Pedro Nava. O espírito da “Padaria” era regulamentado pelo seu Estatuto, em artigos como estes:

  Art. 5 – Haverá um livro especial para registrar-se o nome comum e o nome de guerra de cada Padeiro, sua naturalidade, estado, filiação e profissão, a fim de poupar-se à posteridade o trabalho dessas indagações;
  Art. 14 – É proibido o uso de palavras estranhas à língua vernácula, sendo, porém, permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes;
  Art. 24 – Trabalhar-se-á por organizar uma biblioteca, empregando-se para isso todos os meios lícitos e ilícitos;
  Art. 26 – São considerados, desde já, inimigos naturais dos Padeiros – o Clero, os alfaiates e a polícia. Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear o seu desagrado a essa gente;
  Art. 39 – As mulheres, como entes frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio, excetuadas as fumistas, as freiras e as professoras ignorantes;

Seria o jornalista Agamenon uma reencarnação de algum Padeiro espiritual?  

A Padaria Espiritual pode ser considerado uma revolução pré-modernista. Durou de 1892 a 1896, publicando 36 edições do jornal “O PÃO”, pioneiro da sátira cáustica, ferina e objetiva que anos mais tardes o “Barão de Itararé” (Aparício Torelli) publicaria em “A Manha”, e em O Cruzeiro, Péricles do Amaral com o “Amigo da Onça” e Millor Fernandes com “Pif-Paf”, Millor que se juntaria ao Jaguar e Ziraldo, entre outros, em O Pasquim, reeditatado mais tarde, sem o mesmo sucesso como “O Pasquim 21”, além da revista “Bundas”.
  O humor dos “padeiros” é ancestral dos radiofônicos “PRK-30” e “Balança Mas Não Cai” e dos televisivos “Faça Humor não faça a Guerra”, “Satiricon”, “Planeta dos Homens” e o resistente “Caseta & Planeta”, além da coluna dominical do “Agamenon”, um legítimo “Padeiro Espiritual”.